O Surdo Funcional

Débora M. H.
3 min readJul 14, 2020

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Analfabeto funcional é fichinha.*

Imagem de Christine Sponchia por Pixabay

Você deve conhecer o termo “analfabeto funcional”. O sujeito que, mesmo sabendo ler e escrever, não consegue interpretar textos ou executar operações matemáticas. Infelizmente, uma parte considerável da população brasileira. Pois bem, deixando constatações políticas e humanitárias de lado, analfabeto funcional é fichinha perto do surdo funcional.

Não falo daquelas pessoas que nasceram com alguma deficiência auditiva, mas dos que, parodiando analfabetos funcionais, têm todas as suas funções positivas e operantes e ainda assim insistem em não escutar nada do que os outros falam.

Não é possível estabelecer um diálogo com essas pessoas: para elas, só o monólogo existe, embora muitas nem saibam o conceito de monólogo.

A cena é típica: você tem a infeliz ideia de perguntar qualquer coisa para o surdo funcional e ele responde, sem dar brecha para comentários. Você até aproveita a primeira ou segunda pausa que ele faz para respirar e retruca. Mas o sujeito simplesmente ignora e continua sua eterna ladainha, como se a vida dele fosse a única coisa interessante no mundo.

Não é possível estabelecer um diálogo com essas pessoas: para elas, só o monólogo existe, embora muitas nem saibam o conceito de monólogo. Narcisismo, egoísmo, chatice de carteirinha? Difícil definir a causa da deficiência. Certamente afeta algum lugar no cérebro que controla a percepção de mundo dos ditos-cujos. Para eles, tudo se resume a sua limitada experiência de vida — o resto é vácuo.

“Descobri que as pessoas que não ouvem, só não ouvem ao vivo."

Se você convive com alguém assim, não jogue a toalha tão cedo. Esta que vos escreve vasculhou o Google e encontrou uma solução para ao menos minimizar a síndrome: use o telefone.

O conselho veio do escritor Mário Prata, que abordou o assunto em uma de suas crônicas**. “Descobri que as pessoas que não ouvem, só não ouvem ao vivo. Mas se você telefonar, elas te escutam, te ouvem, enfim, falam com você. Não sei qual é a mágica do telefone para fazer trazer aquelas pessoas à nossa realidade e ao nosso mundo. Aí passei a só falar com este tipo de gente por telefone. Se a ligação for interurbana, ele ouve mais ainda.”

Então, da próxima vez que encontrar um surdo funcional pela frente, segure a vontade de gritar, diga que tem um compromisso urgente (quando você virar as costas ele deve prestar atenção) e peça para ligar no dia seguinte. Ele ficará agoniado, mas ao menos vocês irão conversar.

Conselhos finais

Photo by Ksenia Makagonova on Unsplash

Não caia na tentação de usar o WhatsApp! Ele sempre pode querer conversar por vídeo e clicar na câmera, aí, já era. Claro, sempre dá para usar a desculpa da conexão ruim e não atender, mas então você não vai conseguir dizer o que queria.

E, lógico, descarte o chat. Quantas pessoas você conhece que conseguem interpretar uma frase com mais de três palavras?

Por fim, não confunda surdos funcionais com falantes por natureza. Os últimos falam por prazer, mas sabem ouvir quem os rodeia, participar de conversas e responder a questionamentos simples, como “por que você teima em contar sempre a mesma história?”.

*Adaptado da crônica “O Surdo Funcional” publicada em outubro de 2010 no blog pessoal Lixeira da Dé, nome criado às pressas na ânsia de publicar. Psicólogos diriam que é um reflexo de insegurança e autodepreciação. Em 2010, creio que eles estariam certos.

**Trecho retirado de artigo de Mário Prata para a Revista BCP, de fevereiro de 2003

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Débora M. H.

A Brazilian living in Lisbon. Marina’s mom, marketing & data analysis, writing for love.